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domingo, 27 de outubro de 2013

O Aleph - Jorge Luis Borges


Chego agora ao centro inexprimível da minha história; principia aqui o meu desespero de escritor. 
Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos, cujo uso pressupõe um passado dividido pelos interlocutores; como transmitir aos outros o Aleph infinito que a minha memória receosa mal contém? 

Os místicos, em semelhante caso, esbanjam os símbolos: para significar a divindade, um Persa fala de um pássaro que de certa maneira, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma. Nesse instante gigantesco vi milhões de acções deleitosas ou atrozes, nenhuma me espantou tanto como o facto de que todas ocupavam o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. Aquilo que os meus olhos viram foi simultâneo: o que descreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. Quero no entanto relatar algumas coisas de tantas que vi.

Por baixo do degrau, para a direita, vi uma pequena esfera com um brilho quase intolerável. A princípio supus que girava sobre si própria; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos espectáculos vertiginosos que ela continha. O diâmetro do Aleph devia ser de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava dentro, sem redução. Cada coisa (o vidro do espelho, por exemplo) era uma infinidade de coisas, pois eu via-a nitidamente de todos os pontos do Universo. Vi o mar populoso, vi a madrugada e a noite, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto quebrado (era Londres), vi olhos intermináveis fixos em mim, imediatos, como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum reflectia a minha imagem, vi num pátio traseiro da Rua Soler o mesmo ladrilho que vi há trinta anos numa casa de Fray Bentos, vi cachos, neve, tabaco, minas de metal, vapor de água, vi desertos convexos sob o Equador, e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a cabeleira violenta, o corpo altivo, vi um cancro no seio, vi um círculo de terra seca sobre um passeio, no lugar onde estivera uma árvore, vi numa casa de campo de Adrogué um exemplar da primeira tradução inglesa de Plínio, a de Philémon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de cada página (em criança, assombrava-me sempre o facto de as letras de um livro fechado não se misturarem, até se perderem, durante a noite), vi a noite e o dia contemporâneo da noite, vi um pôr do Sol em Queretaro que parecia reflectir a cor de uma rosa de Bengala, vi o meu quarto de dormir sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam sem fim, vi cavalos com crina esvoaçante sobre uma praia do mar Cáspio, de madrugada, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha a enviarem postais, vi numa montra de Mirzapur um baralho de cartas espanholas, vi sombras oblíquas de fetos no solo de uma serra, vi tigres, pistões, bisontes, vi vagas e exércitos, vi todas as formigas da Terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta de escritório (e a letra fez-me estremecer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um monumento adorado no cemitério da Chacarita, vi a relíquia atroz do que fora deliciosamente Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu sangue obscuro, vi a engrenagem do amor e as alterações da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a Terra e na Terra de novo o Aleph e no Aleph a Terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto, e senti vertigens, e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural, cujo nome os homens empregam indevidamente, mas que nenhum homem viu: o inconcebível Universo.

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